Era uma vez...
Era uma vez...

Espelho da alma

O meu coração disparava todos os dias por volta daquela hora. Batia desenfreado como se quisesse saltar cá para fora. Bastava sentir o aroma de café torrado ou o som das colheres a rodar nas chávenas para me lembrar daquela Visão matinal, que me fazia corar todas as manhãs.

A sua Luz apaixonante atravessava aquela rua movimentada e ocupava-me a mente. Ele é um cliente habitual. Costuma sentar-se naquela esplanada em amena cavaqueira com os amigos que o acompanham ao pequeno-almoço.

Hoje parei junto à montra do pronto-a-vestir, que tantas vezes serviu de espelho para o observar. Procurei a sua figura agradável, a sua expressão de gozo e os seus gestos matinais sob o som descompassado dos meus suspiros.

Ele não estava lá. A mesa, onde costumava pousar a sua chávena, estava prestes a ser ocupada por uma mulher e os seus sacos. Aquela ausência descontrolava o meu coração e enchia-me de uma profunda tristeza. Eu conseguia aguentar a distância, mas não o ver era um peso insuportável.

O meu corpo ganhou toneladas de pressão que me bloqueava os movimentos. Cada ponto do meu ser era invadido por uma sensação estranha de perda de alguém que nunca tinha tido.

Uma voz quente e masculina interrompeu o meu descontrolo. Bem próximo do meu ouvido esquerdo disse “Todos os dias a vejo aqui, a observar esta montra. O que é que lhe interessa?”. Nem me mexi. Assustei-me! Um homem que me observa todos os dias… só pode ser um tarado!

Imóvel e calada, tentei ignorar o homem, na esperança que se fosse embora. Nem sei o que pensei. Apenas queria que aquela sensação de insegurança – de medo até – me deixasse em Paz. Aquela presença continuava ali em Silêncio. Decidi então olhar com firmeza e insultá-lo o quanto pudesse, chamando assim à atenção de quem passava.

Inspirei fundo e, assim que me senti confiante, virei-me na sua direcção. Para meu espanto, dei de caras com ele, o homem que todas as manhãs observava, que nem uma tarada, através da montra do pronto-a-vestir que lhe pertencia.